Mais uma vez o assunto do jantar era Soraia. Seus pais sempre implicavam com seu jeito estranho de agir, de falar... Nunca estavam satisfeitos com as atividades que fazia e não se incomodavam quando seu irmão mais velho sacaneava com ela. Essa noite jantou em silêncio tentando bloquear as vozes que falavam absurdos sobre ela. Apenas queria voltar a praticar o que fazia de melhor: tocar violoncelo, mas não podia, já que seus pais a tiraram da aula para pagar as aulas de futebol do irmão.
Terminou de comer, pediu licença para se retirar da mesa e foi para seu quarto, o único lugar do mundo onde se sentia livre, colocou para tocar o primeiro cd de clássica que achou: Tchaikovsky. Deitou em sua cama e adormeceu, pensando em como poderia deixar seu mundo melhor. Sonhou com um mundo vermelho, novo e diferente, onde ela podia sorrir e andar por corredores onde os únicos olhos que a encaravam eram os das pinturas nas paredes.
Soraia já estava acordada quando o sol começou a iluminar o céu. Em poucos minutos a casa iria acordar e o sossego que tanto gostava, acabaria. Foi tomar banho para ir à escola, e quando a água quente tocava seu delicado e pálido corpo começou a ouvir um sussurro que não vinha de fora daquele banheiro. Uma voz em sua mente havia acabado de despertar.
Não queria ir para a escola, mas essa não era uma opção para ela. Aproveitava qualquer oportunidade que tinha para sair de casa, pois não suportava a idéia de ficar naquele lugar mais tempo que o necessário
Sentiu um cheiro bom vindo da cozinha, e se entristeceu com isso, pois estava atrasada para o café da manhã. Mais motivos para brigas. Rapidamente penteou seus longos cabelos negros e desceu para se juntar àquela família que tanto repudiava.
Depois de cinco horas, caminhava por aquela paisagem cinza de dezembro, a caminho de casa, fingindo que ouvia seu irmão falar de suas notas medianas. Só conseguia pensar na bronca que iria levar quando aquele que chamava de pai descobrisse sua nota vermelha em aritmética.
Chegou em casa, disse olá para seus habitantes mas, como de costume, não recebeu resposta. Subiu as escadas, tirou o uniforme colocou-o na cadeira ao lado de sua cama e ficou se perguntando o porque de ter que usar saia e sapatos para ir à escola. Não conseguiu pensar em uma resposta digna e ficou reclamando de seu tão odiado uniforme escolar.
Desceu calmamente para o almoço com o boletim nas mãos. Entregou-o para seu pai e esperou por sua reação. Não a positiva por seu ótimo desempenho em todas as matérias, mas a negativa por ter falhado em uma. Olhava para as veias que apareciam em seu pé quando sentiu cinco dedos seguidos por um ardor em sua face direita, isso a fez despertar de seus pensamento para encarar seu pai que estava com aquele olhar de desprezo e descontentamento que tanto conhecia. Parou de ouvir a bronca quando os lábios de seu pai falaram que ela era o desgosto daquela família.
Passou o resto do dia morando em seus pensamentos.
À noite, sonhou novamente com o mundo manchado de vermelho, com os quadros. Percebeu que estava em sua casa, mas ela estava estranhamente calma, começou a escutar sua música favorita que vinha da sala, mas ninguém reclamava por estar tocando “aquela musica de gente velha e chata”. A casa estava deserta. Soraia se sentiu feliz por estar sozinha. Começou a ouvir uma voz acalentadora que surgia de seu interior e que não parava de repetir: “permita-me te guiar minha princesa, eu poderei criar esse mundo calmo e perfeito para você...”. Subiu as escadas, se deitou, e adormeceu ouvindo aquela doce voz e sua música. Acordou com sua mãe gritando que se não levantasse naquele instante, iria levar uma bela surra.
Agora, Soraia desejava a noite, para poder dormir e sonhar com aquele lugar que apenas na disposição das paredes e dos móveis se parecia com sua casa.
Depois de um par de meses, o sonho mudou. Estava deitada no tapete da sala escrevendo a partitura daquela música que tanto adorava quando ouviu passos se aproximando. Pensou que sua paz estava acabada, mas notou que aqueles passo não a deixava nervosa, mas ao contrário, a traziam uma sensação de paz.
Os passos pararam junto à porta da sala e a doce voz falou: “olá minha princesa.” Nesse instante ela se levantou e viu uma bela mulher uns dez anos mais velha que ela, usando um belo vestido branco rendado, cabelos separados em duas tranças e pés descalços. Soraia pediu para ela se sentar e ofereceu a ela o que comia, biscoitos de chocolate e leite. A moça sorriu e aceitou. As duas se sentaram no sofá e começaram a conversar. Nesse instante Soraia percebeu os finos e belos traços de sua convidada inesperada.
Conversaram sobre os desejos e sonhos de Soraia. De sua família, do quando gostava daquele mundo vermelho. Nesse instante a Moça de Branco falou que se ela permitisse, poderia transformar o mundo real no mundo vermelho que tanto gostava. Uma pontinha de dúvida surgiu no pensamento de Soraia, mas esta logo se foi, e ela disse sim. Logo após seu sim, a casa vermelha foi invadida por um barulho forte e não harmonioso que Soraia logo identificou como seu despertador.
Naquela tarde, sem saber ao certo o porque, Soraia decidiu visitar o sótão de sua casa, que guardava coisas de suas gerações passadas. Lá encontrou um baú que pertencera à sua avó. O abriu com cuidado e deu uma olhada dentro dele e ficou surpresa ao encontrar o vestido que a Moça de Branco usou na noite anterior. Sorriu para si mesma contente pelo achado e levou o vestido para seu quarto.
A noite chegou, e ela dormiu esperando ansiosamente para que o sonho chegasse.
Abriu os olhos e se deparou com o teto de seu quarto, sabia que estava em seu adorado mundo vermelho. Saiu rapidamente da cama e colocou o vestido de sua avó. Sentiu-se linda dentro dele. Desceu as escadas e chegou à sala onde viu a Moça de Branco, que a recepcionou com um largo sorriso.
Começaram a conversar - Soraia gostava de conversar com ela – e enquanto conversavam a Moça de Branco fez duas tranças no cabelo de Ellen, ao final da conversa as duas estavam iguais, exceto pela idade que aparentavam.
A Moça de Branco pediu para ver o resto da casa, e Soraia se dispôs a mostrá-la para ela. Passaram pela cozinha e foram para o andar de cima onde ficavam os quartos. Soraia abriu todos os cômodos da casa para que a Moça de Branco pudesse vê-los com clareza. Passou pelo quarto do irmão, e dos pais. Estranhou quando a Moça de Branco caminhou em volta da cama de cada um deles, mas preferiu não fazer perguntas.
O último cômodo que entraram foi seu próprio quarto. Lá, Soraia colocou novamente sua roupa de dormir e a Moça de Branco a colocou na cama, deu-lhe um beijo na testa e desejou-lhe boa noite. Antes de fechar a porta do quarto disse-lhe: “Pronto minha princesa, seu mundo vermelho está criado.” Soraia fechou os olhos e depois de poucos instantes o despertador começou a tocar.
Abriu as janelas e viu que o sol estava despertando. Tomou um demorado banho. Ao sair do banheiro notou respingos vermelhos no vestido branco, mas não se importou, talvez eles já estivessem lá. Desceu para tomar café da manhã e não viu ninguém. Preparou algo para comer, foi para a sala, colocou musica clássica no som e não ouviu nenhuma voz reclamando. Passou o dia na mais tranquila paz. Foi para a cama e dormiu. Ficou brincando a noite toda com a Moça de Branco. Acordou na hora certa para ir à escola. Vestiu o uniforme e enquanto descia as escadas estranhou mais um dia sem aqueles que habitavam a casa. Começou a imaginar o que estava acontecendo.
Ao voltar da escola viu viaturas paradas em frente ao que começou a considerar de lar e correu para saber o que estava acontecendo. Não quiseram revelar detalhes, mas sua família fora assassinada. O fato de Soraia não chorar ou demonstrar qualquer sentimento chocou os policiais que estavam no local do crime.
Ela agora era órfã. Pediu para continuar na casa, podia se virar sozinha – explicou para todos que estavam naquele lugar- mas estes a explicaram que ela não poderia ficar naquele lugar.
Dentro de uma viatura, seguia para a casa de uma tia que morava longe, a única que aceitou ficar com aquela menina estranha. Soraia olhou para o retrovisor do carro e viu a Moça de Branco, nesse instante seu coração se acalmou. Ela sabia que tudo ficaria bem.
Muito bom esse conto!!! Que você continue escrevendo histórias desse nível!!! Desculpa se eu não postei antes,linda,não estava tendo tempo de ver o seu blog!!! Você sabe: prova,trabalho...
ResponderExcluirBjos,linda!!!
Alberto
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Wow! Adorei o conto! n__n Principalmente a parte do "biscoitos de chocolate e leite". ^__^
ResponderExcluirMas, a Soraia, na parte "Uma voz em sua mente havia acabado de despertar"[...]"Começou a ouvir uma voz acalentadora que surgia de seu interior", ela é esquizofrênica? O__o
Só porque ela tem hábitos diferentes dos de sua familia e tirou nota vermelha numa matéria, ela é desprezada pelo pai? ¬__¬
A Moça de Branco e o mundo vermelho...
Afinal, a moça de branco é a avó dela? Não é?
Acho que a familia dela a tratava tão mal, a criticava tanto, que ela mesma (em pensamento) desejou que eles sumissem. É por isso que ela criou esse mundo vermelho. Na verdade, eu entendi dessa forma.
Esse conto, com o fato do "mundo vermelho", a humilhação que Soraia sofre e por ser uma adolescente, me fez lembrar um filme que, se não me engano, se chama CARRIE - A ESTRANHA (1976). Um clássico (no bom sentido - consegue ser assustador até hoje!!!).
Parabéns, Ysa, pelo conto! Acredito que está bem escrito porque envolve o leitor a ponto de criar uma certa curiosidade sobre as atitudes de Soraia (e, por que não, da sua familia?). Pelo menos na 1ª leitura achei assustador (estranho, esquesito), mas depois (na 2ª leitura e assim por diante) fui entendendo outras coisas...
Não tem jeito, já tá virando um hábito pra mim; é a influência do professor Amauri em analisar obras. ^__^
Abracim e bejim da Jubs. ^.^